Deixei o coração com a Lua

Deixei o coração com a Lua, isso mesmo, deixei-o lá, pedi que me o guardasse enquanto fui jogar a bola, para não o sujar, é que a minha mãe chateia-me imenso quando chego com o coração sujo a casa, manda-me logo tomar banho e grita efusivamente, " já te disse para não andares a brincar com o coração ". Assim safo-me da reprimenda, a Sr. Lua gosta muito de mim, mora perto do jardim que eu gosto de ir e vejo-a todas as tardes quando saio da escola, vive sozinha, já é um pouco idosa, tem um neto da minha idade, gosto muito de brincar com ele, mas ele só vem aos fins de semana, é pena, mas é assim a vida.

O meu coração está como novo, sem um único arranhão, brilhante, encarnado forte, vivo, já o da minha mãe, parece um puzzle, com várias rachas, vários cortes, coitada, já brincaram muito com o coração dela, ela já me disse " não dês o coração de mão beijada a ninguém ou devolvem-to em nacos ", eu acredito nela, principalmente quando olho para o dela, abandonado na estante da sala perto do relógio da Avó, desistiu do amor, diz que amar é bom na nossa idade, onde nos podemos arrepender, onde podemos começar sempre de novo, ela compara a vida na minha idade com um jogo de computador, "tu podes errar, amanhã começas tudo do zero, tens tempo", não concordo com isso, odeio errar, odeio que olhem para mim e pensem "és um falhado", não gosto, não gosto, não gosto.

Uma vez, pedi a Lua para me deixar ver o seu coração, não sei porquê, ela não deixou, será que não o tem? Será que o dela já se partiu? E quando se partir, como fazemos? Dão nos um novo? Ai, não percebo nada destas tretas, ela diz que tem saudades de ver corações como o meu, ingénuos, simples e fáceis de compreender, diz-me que um dia, as minhas dúvidas deixarão de ser porquê que o baloiço do parque é azul e vão começar a ser porquê que toda a gente quer o meu coração, sou sincero, fiquei na mesma, parece que à medida que vamos crescendo o nosso coração começa a ser cobiçado, mas porquê? Tenho 10 anos e nunca precisei dele para nada, só faz peso e só me ajuda a levar reprimendas quando o sujo. A minha mãe não permite que o deixe em casa, diz que não nos podemos desfazer dele, nem o perder de vista, nem por um segundo, na escola todos os meninos andam com o seu, estamos proibidos de os levar para o recreio, não podemos tocar nos outros corações, dizem que isso só é possível a partir do 2º ciclo, os meus amigos que têm irmãos mais velhos contam-me que lá, eles trocam os corações como se não houvesse amanhã, um amigo meu disse-me que o irmão dele, trazia sempre com ele dois corações de duas raparigas diferentes e que em casa se metia a brincar com eles, a tentar fazer truques de magia e malabarismo, eu achei estranho, para que quer um rapaz dois corações, se um já me pesa, quanto mais dois, Deus me livre.

Estou no ultimo ano do 1º ciclo e estou um bocado ansioso, não sei como reagir se me pedirem o coração emprestado  ou se me quiserem emprestar o deles, a Lua diz-me para não ter medo, mas também diz o mesmo que a minha mãe,  " tem cuidado com isso, é o teu bem mais precioso ", eu não entendo porquê, Lua trata muito bem do meu coração, quando lhe o dou para me o guardar, ela abraça-o com tanto carinho que me aquece as bochechas, tornando-as rosadas, já pensei em dar-lho, mas duvido que aceitasse, espero que no ciclo tratem bem dele, espero empresta-lo a pessoas que cuidem tão bem dele quanto Lua, não quero um coração como o da minha mãe, ela disse-me que o dela foi na escola, que o emprestou vezes demais e nunca aos rapazes certos, disse que nunca ligamos ao primeiro risco, que nunca nos preocupamos com o primeiro arranhão no nosso coração, que afinal de contas, é só um arranhão e com o bepanthene, tudo sara, afirma que o problema vem depois, quando temos arranhões a mais, quando cada arranhão começa a suar a lembrança e quando as lembranças são muitas, a nostalgia torna-se melancólica, o que faz com que o nosso coração perca brilho e cor, ela diz que o brilho do coração, transmite a nossa força, quanto mais força temos, mais brilho ele carrega, eu perguntei-lhe, " se assim aí, porquê que eu não tenho força para mover a mesa da sala? Já viste como o meu coração brilha? ", ela riu-se e disse-me "Oh filho, um dia vais perceber que a força não é só física, também a tens lá dentro", eu confesso, fiquei a saber o mesmo.

Acho o mundo dos adultos bastante complicado, qual a necessidade de trocarem de corações assim? Porquê que não encontram um que gostem e ficam com eles para sempre? E mais, porquê que aquele rapaz andava a brincar com aqueles dois corações? E como é que ele tinha dois corações se só podemos dar um para troca? Será que o dividiu? Será que não o trocou? Aii, não percebo nada, mas espero um dia perceber ou espero que me o ensinem na escola, por agora deixa-me ir buscar o meu coração a Lua que está quase na hora do jantar.